O dano que a ferrovia da Deutsche Bahn pode causar no Brasil

O dano que a ferrovia da Deutsche Bahn pode causar no Brasil


De olho em hidrogênio verde e terminal com saída para o Atlântico, estatal alemã quer apoiar complexo porto-ferroviário no Maranhão, mas comunidades quilombolas não teriam sido consultadas sobre os impactos

Porto Velho, RO - Um protesto em frente à sede da empresa estatal de trens da Alemanha – a Deutsche Bahn (DB) – em Berlim, no final de maio, reuniu cerca de 30 pessoas contra a construção de um megaprojeto na floresta amazônica. Os manifestantes empunhavam cartazes onde se lia “Contra o ecocídio e o deslocamento forçado” e “Europa, a sua dupla moral mata”. Quem passava, não entendia: uma ferrovia alemã em plena Amazônia?

A manifestação tentou chamar a atenção para o apoio da empresa alemã à construção prevista de um complexo porto-ferroviário na Baía de São Marcos, no Maranhão, a cerca de 90 km da capital estadual, São Luís, entre 2025 e 2026. Mais precisamente, apontou para o fato de que, se o projeto sair do papel, o futuro Terminal Portuário de Alcântara (TPA) poderá impactar boa parte da área quilombola da Nova Ilha do Cajual – sem o conhecimento de parte das comunidades que vivem na região, já que elas não teriam sido consultadas.

As críticas dos manifestantes em Berlim contrastam com os benefícios ambientais, logísticos e econômicos destacados no vídeo institucional da empresa privada Grão-Pará Maranhão (GPM), responsável pelo projeto do complexo.

Com o objetivo de exportar commodities como grãos e minério de ferro, além de hidrogênio verde, para a Europa e para a China, o projeto apoiado pelo Estado do Maranhão deverá ter endosso da estatal alemã de trens Deutsche Bahn, que assinou um memorando de entendimento com a GPM para desenvolver o Terminal Portuário de Alcântara em conjunto com a empresa de origem portuguesa.

O projeto deverá incluir uma futura ferrovia de 520 quilômetros, a EF-317, que deverá ligar o município de Açailândia a Alcântara, próximo ao porto, cortando o norte maranhense para o transporte de grãos e minério de ferro.

A ideia do projeto é aumentar ainda mais as exportações desse tipo de produto. Dados de janeiro de 2024 da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) mostram que os números das remessas de commodities para o exterior foram recordes no Brasil no ano passado.

Sem consulta às comunidades

O aval ao empreendimento foi oficializado em dezembro de 2018, quando a empresa GPM assinou um contrato de adesão com o governo federal e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). E, desde 2017, o avanço do empreendimento se apoia num acordo de parceria com a associação quilombola da Nova Ilha do Cajual.

Procurado pela DW, o diretor da empresa Grão-Pará Maranhão, Paulo Salvador, afirmou que “a única comunidade tradicional com direitos na ilha do Cajual, no município de Alcântara, é a comunidade quilombola, representada pela Associação Quilombola da Ilha do Cajual”. Segundo ele, a empresa “mantém um bom entendimento contratual com essa associação, incluindo participações financeiras em favor da comunidade, como registrado em documentos oficiais”.

Porém, o acordo assinado com associação quilombola da Nova Ilha do Cajual não inclui todas as outras comunidades em risco de impacto nos arredores da ilha onde estará o porto – e, sobretudo, ao longo da ferrovia planejada.

“O acordo é totalmente ilegal”, afirmou, em entrevista à DW, o defensor público Yuri Costa. “Desrespeita as normas do plano internacional que preveem consultas prévias às comunidades tradicionais e as normas da legislação brasileira”. Além disso, diz ele, a Fundação Palmares, que representa a articulação das comunidades quilombolas no estado, não foi consultada.

O desenvolvimento do complexo vem avançando mesmo sem que as devidas licenças ambientais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tenham sido concluídas.

O licenciamento ambiental do Ibama não é, necessariamente, um pré-requisito jurídico para assinatura de um memorando de entendimento. Mas o licenciamento prevê que as comunidades em risco sejam previamente consultadas, sendo informadas plenamente sobre os potenciais impactos do projeto. Também a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a proteção dos direitos dos povos indígenas, da qual a Alemanha é signatária, diz que as comunidades devem ser instruídas previamente.

“O que não aconteceu”, explicou à DW Mikaell de Souza Carvalho, coordenador da organização Justiça nos Trilhos, que fez um levantamento sobre o conhecimento das comunidades a respeito do projeto na região, onde há cerca de 22 municípios que podem ser afetados pelo traçado da ferrovia. A princípio, os trilhos previstos tampouco servirão para o transporte de pessoas, mas apenas para os produtos de exportação.

O levantamento da associação mostra que uma comunidade, Tanque de Valença, não constava no seu mapa, embora deva ser afetada pelo traçado da linha ferroviária. Segundo a organização, o projeto também poderia impactar Áreas de Proteção Ambiental.

“Relações de coerção”

Questionado pela DW, Paulo Salvador, da GPM argumentou que “o traçado da ferrovia está sendo planejado em uma área já alterada pela atividade humana, evitando áreas ambientalmente protegidas, vilarejos e assentamentos, e promovendo a preservação das florestas nativas, que não serão afetadas pelo projeto”.

As comunidades têm o direito de escolher sobre os seus acordos, disse Costa. Mas ele explicou que a defensoria pública está em contato com a comunidade da ilha para entender possíveis relações de coerção. “Não sabemos em que condições assinaram este acordo em 2017, não sabemos como foram informados”.

Um membro de uma comunidade que vive nos arredores da ilha e que não quis ter seu nome revelado pela reportagem também contestou à DW que “a maioria das pessoas na comunidade da Nova Ilha do Cajual não sabe ler nem escrever”.

Procurada pela DW, Vanda Almeida Pereira, a vice-presidente da associação quilombola da Ilha do Cajual, afirmou que não concederia entrevista por telefone.

Prejuízos sociais e ambientais

A área quilombola da Nova Ilha do Cajual deverá ser a mais impactada pelo futuro terminal portuário – especialmente a atividade pesqueira, que garante o sustento de comunidades ao redor. Segundo Yuri Costa, o processo para a regularizar o território está pendente há mais de dez anos (desde 2007) no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. O título oficial e definitivo como território quilombola daria garantias às famílias que moram na região.

Além disso, em 2018, o Ibama apontou no seu relatório de visita técnica que a ilha tem fragilidades sociais e ambientais que podem ser agravadas com a implementação do projeto. Localizada na Área de Proteção Ambiental das Reentrâncias Maranhenses, os ecossistemas do território são habitados por várias espécies terrestres e marinhas, como lontras e golfinhos, e cerca de 150 mil aves migratórias estacionam na ilha anualmente – uma delas é o guará, ave ameaçada de extinção.

A região é igualmente conhecida por abrigar uma importante área arqueológica brasileira, com vestígios de fósseis de pelo menos 95 milhões de anos.

Hidrogênio verde para a Alemanha

A Alemanha vê no Brasil um fornecedor estratégico do hidrogênio verde para concretizar sua virada energética e cumprir as metas climáticas do país europeu. Porém, ainda há desafios logísticos para exportar o combustível renovável.

De olho nessa produção, a Deutsche Bahn, maior empresa de seu ramo no mundo, assinou o memorando de entendimento com a GPM. Posteriormente, deverá se tornar a operadora da ferrovia. A operação será feita em parceria com o parceiro local Sysfer, com a DB Engineering & Consulting como operador-sombra (entre outros aspectos, responsável por revisar a engenharia, definindo os requisitos de operação).

Com o início das construções previstas para os próximos dois anos, a ideia é oferecer pelo menos a nova infraestrutura portuária, a partir de 2027, para atender as exportações de commodities.

Mas São Luís já tem dois portos, o de Itaqui e o Ponta da Madeira – e projeta o futuro Porto de São Luís, que ainda não saiu do papel. Os idealizadores do projeto Grão Pará Maranhão defendem que o novo ancoradouro, construído nos arredores, no município de Alcântara, contribuirá para atender a demanda crescente da exportação de grãos e minérios.

Que danos a ferrovia pode causar?

Da sua comunidade, Piquiá de Baixo, no município de Açailândia, – onde se prevê construir a nova ferrovia –, Flávia da Silva Nascimento, que participou dos protestos em Berlim, já se acostumou a ver os vagões de trens transportando minério que “nunca trouxeram nenhum progresso para os moradores”, diz.

Queixas decorrentes da construção de ferrovias também já são conhecidas pela organização Justiça nos Trilhos, por causa da Estrada de Ferro Carajás, que também já foi duplicada. É principalmente minério de ferro da Vale S.A. que é transportado ao longo dos seus 890 quilômetros. O produto vem sobretudo de Carajás, que abriga as principais jazidas de minérios do Brasil. Juntamente com o Quadrilátero Ferrífero, a região é uma das maiores produtoras de minério de ferro do país e uma das maiores do mundo.

O município de Açailândia, localizado no corredor Carajás, tem grande importância para as operações da Vale, mas há pelo menos três décadas sofre com os efeitos da mineração e com as obras de duplicação da EFC. Nessa cidade, a Vale S.A. mantém uma base de operações e manutenção ferroviária, além de um entreposto de venda de minério de ferro vindo de Carajás.

No distrito industrial de Piquiá de Baixo, em Açailândia, também operam as usinas siderúrgicas da Vale. Devido ao grande número de operários que começaram a circular na região, muitas mulheres e jovens tornaram-se vulneráveis à exploração sexual, explicou a moradora Flávia da Silva Nascimento.

“Já respirou pó de ferro?”, também questionavam os ambientalistas na capital alemã. “Várias formas de poluição – do ar, água e sonora – além de rachaduras nas casas, são problemas gerados pela passagem dos trens. Há a poluição dos rios e igarapés, porque o transporte de minério de ferro é feito com vagões abertos e a poeira se deposita no solo e nos rios. Já temos essa experiência com a Estrada de Ferro Carajás, e não queremos que isso se repita”, disse Carvalho, o coordenador da Justiça nos Trilhos.

O diretor-executivo da empresa Grão-Pará Maranhão, Paulo Salvador, disse à DW que o “foco da ferrovia EF-317 será o transporte de grãos vindos da Ferrovia Norte-Sul, hidrogênio e amônia verdes. O trecho sul, entre Açailândia e Alto Alegre do Pindaré não tem características que possibilitem o transporte de minérios. Apenas o trecho norte – entre Alto Alegre do Pindaré e Alcântara – terá possibilidade de transportar minérios”.

Mas muitos membros das comunidades ao redor duvidam, porque a região está muito vinculada aos projetos da Vale S.A. Ambientalistas ouvidos pela DW disseram também que boa parte dos ecossistemas ao redor da nova ferrovia podem ser afetados. “No Maranhão, além da presença de comunidades tradicionais, há os grupos indígenasisolados que dependem da caça para sobreviver. Uma ferrovia afeta o modo de vida dos animais. Não adianta dizer que o traçado está a 10-20 km quando afeta todo o ecossistema”, explicou Carvalho, da Justiça dos Trilhos, à DW.

“Empreendimento não envolverá ferrovia”

Salvador, da GPM, afirmou que “neste momento, só o terminal portuário está em fase de licenciamento, ainda em fase inicial, e, portanto, o empreendimento não envolverá a construção de ferrovia […]”. Mas não esclareceu o que significa “licenciamento ambiental integrado porto e ferrovia”, como consta na página do projeto.

Ainda não se sabe se o empreendimento da ferrovia vai sair do papel. À DW, um membro da comunidade Porto Novo Cujupe, onde vivem cerca de 160 famílias em frente à Ilha do Cajual, na parte continental, disse ainda não saber os impactos do futuro Terminal Portuário de Alcântara. “Primeiro falaram que íamos fazer uma assembleia em São Luís, mas nada com a empresa. Iam tentar buscar alguém da empresa para nos esclarecer. Era para ser em março esta reunião, mas não foi feito”, explicou.

E a Deutsche Bahn?

“Do ponto de vista jurídico a chamada Lei da Cadeia de Suprimentos, que entrou em vigor no ano passado na Alemanha, obriga as empresas a uma análise de precaução para evitar os riscos ao meio ambiente e a violação dos direitos humanos”, afirmou, em Berlim, junto aos que protestavam, o jornalista alemão Christian Russau, que tem pesquisado a influência da estatal de trens alemã Deutsche Bahn na construção do megaprojeto no Brasil.

Questionada sobre se tinha consciência de que não há licenças ambientais concluídas para o projeto porto-ferroviário no Maranhão, e de que muitas comunidades não foram ouvidas, a Deutsche Bahn respondeu que “uma eventual participação pressupõe que, entre outras coisas, os eventuais requisitos ambientais sejam confirmados por um organismo independente da Grão-Pará Maranhão”, e disse que “neste momento a participação da DB Engineering & Consulting (DB E&C) no projeto está excluída”.

Por isso, entre os que protestavam em Berlim contra a participação da DB no megaprojeto na Amazônia, o jornalista alemão Christian Russau explicava: “A Alemanha financia muitos projetos que protegem o meio ambiente. Mas não pode dizer que quer proteger a Amazônia e, ao mesmo tempo, participar de projetos que violam direitos humanos – isso é inaceitável”.

Fonte: Carta Capital

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